'Crônicas de uma infância no sertão' passeia pelas memórias de professor baiano

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'Crônicas de uma infância no sertão' passeia pelas memórias de professor baiano

A ideia de escrever o livro surgiu na pandemia 

Crédito: Tatiany Carvalho

Como vencer o abraço de ferro da pobreza em um mundo onde prevalece a lei do mais forte? Quem lança a pergunta é o – ontem, menino, – hoje, professor baiano aposentado Humberto Luiz Lima de Oliveira, 71 anos. O autor do livro Crônicas de uma Infância o Sertão: Memórias de uma Família Brasileira, lançado ano passado pela Quarteto Editora, venceu a penúria de uma infância no interior da Bahia, em uma pequena propriedade rural, agravada pela seca e tantas outras carências. "Foi a educação que me salvou. Hoje tenho orgulho de ser um professor titular, aposentado, de uma universidade pública", destaca o escritor Humberto Luiz de Oliveira.

Alfabetizado pelo avô, num tosco banco de madeira, na varanda da fazenda Ipoeira, o menino passaria a ler com desenvoltura os jornais que chegavam da cidade grande. Intuindo um destino melhor para a criança, o velho Fernando mandaria o neto estudar "para ser gente na vida", isto é, para escapar do processo de massificação que reitera a produção da pobreza material e espiritual. Para sair do abraço de ferro da pobreza, teve que fazer a tripla jornada: trabalhar dois turnos e estudar à noite. Relato tão familiar para quem já viveu o drama do êxodo rural bem comum aos brasileiros e todos os pobres do mundo.

Sem sentimentalismo, mas com grande sensibilidade, ternura e por vezes indignação, o autor traz à cena histórias familiares bem comuns à maioria da humanidade. E com olhar arguto, o escritor deixa falar várias vozes narrativas neste romance que se inova ao trazer links que podem ser acessados para as devidas remissões. O livro se inscreve também na tradição do romance realista pela pluralidade de linguagens com que vai desvendando dores e alegrias de uma família bem brasileira: a lamentável permanência do traço forte da sociedade patriarcal e as consequências nefastas da escravidão com o racismo marcando as relações interpessoais, torturando mentes e corações. Tendo como cenário uma propriedade rural sem garantias de produção econômica, a obra literária traz também o desenraizamento de homens e mulheres, jovens e adultos, condenados ao êxodo rural e que passam de proprietários rurais a trabalhadores urbanos sem qualificação profissional.

O dia em que o cavalo empacou

A ideia de escrever o livro surgiu na pandemia, diante do isolamento social que o impossibilitou de contar histórias aos seus netos, como fez com os filhos. Na roça, sentado em uma cadeira de bambu, enquanto contemplava a paisagem em uma manhã chuvosa, ele reúne os netos - com celulares e notebook - para contar um caso que ocorreu quando era menino: o dia em que o cavalo empacou na encruzilhada das árvores das almas penadas. "Não podíamos sair para montar a cavalo... Foi uma metáfora da pandemia que me inspirou a escrever a história da nossa família", relata.

Em 128 páginas, Crônicas de uma Infância no Sertão: memórias de uma família brasileira conta um passado particular e, ao mesmo, tempo muito similar às histórias de superação das adversidades de tantas outras famílias do sertão. Desde os avós – maternos e paternos – pais, irmãos, as memórias narradas revisitam quem passou pelas bandas da fazenda Ipoeira, distrito de Barra de Mundo Novo, distante 300 km da capital baiana. Histórias de orfandades, de raízes arrancadas, de lutas e lutos. "A morte é parte da vida. É bom que a gente saiba que um dia não estará mais aqui na terra, para melhor valorizar cada momento, cada dia", escreve em um dos trechos do livro.

Em uma época em que quase nada se falava sobre meio ambiente, a infância na roça lhe possibilitou uma relação positiva com os animais e com a natureza. No ambiente onde sempre predominou a força braçal, o professor aprendeu a apreciar a arte culinária. Ele acredita que a situação de subalternidade - em que as mulheres ficaram tanto tempo praticamente obrigadas a cozinhar - as levou a menosprezar o sagrado ato. "Quando eu cozinho, estou convidando para desfrutar a vida", comenta com encantamento o professor que divide com os leitores algumas receitas. "Cada receita pode ser adaptada, reinventada com os ingredientes disponíveis no momento", defende a licença poética e gastronômica.

A nostalgia dos tempos de infância, os ecos da criança de outrora continuam a ressoar no escritor, sendo traduzidos em renovação, energia e criatividade. Tanto que o novo livro já está no forno. "Agora estou escrevendo sobre as memórias da minha adolescência", revela. É esperar para ler...

Sobre o autor:

Pai de dois filhos, avó de quatro netos, o professor Humberto Luiz Lima de Oliveira se orgulha da história que pôde reviver através das letras. "Todo mundo diz ´minha vida dá um romance´, mas poucos escrevem", comemora o doutor em Literatura comparada - Université d' Artois, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) que resume sua identidade assim: "Sou um homem mestiço de ancestralidade múltipla e grato a todos os meus antepassados. Tanto aos ancestrais vindos da África, no exílio forçado pela escravidão, como aos que vieram da Europa, como os italianos e portugueses, também fugindo de distopias, ou on indígenas que aqui se encontravam. Espero conseguir mostrar que, sob a aparência da diversidade ou da estranheza, se esconde uma mesma humanidade. É esta a tarefa ou missão da literatura".

O escritor possui especialização em Estudos Literários e graduação em Letras pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e em Filosofia pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Aposentou-se como professor do Departamento de Letras e Artes e pesquisador do Núcleo de Estudos Canadenses ambos na UEFS. Coordenava o laboratório do Centro de Estudos em Literaturas e Culturas franco-afro-americanas – CELCFAAM. É também autor do livro Narrativas de Alguma Esperança, publicado no ano de 2016.

 

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Quarta, 24 Abril 2024

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