Luz e cor na Princesa do Sertão: representações de um território e suas identidades

Aniversário de FeiraFeira 192 anos

Luz e cor na Princesa do Sertão: representações de um território e suas identidades

  Tatiane Alves Ribeiro, artista e pesquisadora feirense, registra memórias e identidades da Princesa do Sertão

FOto: DIvulgação

Por Tatiane Alves (*)

Nasci em Feira de Santana, mas só me tornei feirense na fase adulta. Isto se deu pelo fato de que a construção de uma identidade tem a ver com o sentido de pertencimento que estabelecemos com os lugares, e foi preciso estar fora do meu território para que o meu olhar sobre ele pudesse se transformar. A mudança para Salvador aos 21 anos me trouxe questionamentos sobre este lugar classificado como cidade de grande porte médio metropolitana, a maior do interior do Nordeste e o segundo maior centro urbano da Bahia. Ao ingressar na universidade, senti-me interiorana, mesmo vinda de uma cidade considerada grande. Aos poucos fui aceitando esta categorização e fui me tornando a Tatiane Alves do interior.

Na primeira semana de aula, fui questionada: o que tem em Feira de Santana além da Rua de Aurora e do Feiraguai? O que significa ser feirense? Senti-me lançada a um abismo identitário em busca de referências que pudessem sucumbir aquele olhar pejorativo sobre a minha cidade. Pensei em tantos pontos turísticos - a igreja gótica, os azulejos da rodoviária, o coreto da Matriz, o CUCA - mas me calei, pois naquele momento não havia argumentos suficientes. Fui me sentindo estrangeira do meu próprio território e precisei voltar ao início de tudo.

Foto: Reprodução

Durante a escola, aprendi muito sobre a cultura europeia e brasileira, mas quase nada sobre o Nordeste ou ser feirense. Pouco se falava sobre Maria Quitéria, o Dois de Julho, os vaqueiros ou os tangerinos. Fora da escola, não me via representada nas revistas de moda ou em produções culturais, e demorei a sentir orgulho por ser feirense. Talvez seja este o perigo de viver em uma região fronteiriça, nos colocando sempre dos dois lados, mas sem pertencer de fato a lugar algum.

Analisando a história da cidade, percebo que sempre foi lugar de passagem, funcionando como rota para vaqueiros que transportavam gado para o litoral no período colonial. Com o tempo, o povoado cresceu, transformando-se na Cidade Comercial de Feira de Sant'Anna, consolidando seu papel como entroncamento rodoviário. A cidade recebeu o apelido de "Princesa do Sertão" em 1919 por Ruy Barbosa, e hoje quem chega é recebido pelo Monumento aos Caminhoneiros e pela Caixa D'água do Tomba.

Nasci nesta fronteira: interiorana demais para ser soteropolitana e metropolitana demais para ser do sertão. A arte se tornou uma narrativa sobre mim e sobre meu território, permitindo trânsitos entre realidades e mundos possíveis. Quanto mais deslocada me sentia, mais descobertas surgiam, e minha identidade se construía a partir dos fragmentos deixados como um caminho de pedras, delineando o mapa circular de Feira de Santana.

Minha cor de pele sempre foi questionada: parda, cor-de-pele-bege-escuro, cor-de-afrodescendente. A região foi habitada pelos povos Paiaiás, depois pelos europeus e africanos escravizados, formando uma paleta complexa de cores e identidades, refletida nos 53,62% da população que se declara parda. Ser considerada parda durante muito tempo soou como incerteza sobre minhas raízes, promovendo uma busca incessante por características que me afirmassem neste universo étnico complexo.

Vivi no entre: bairros à margem da BR-324, rodovias que separam diferentes partes da cidade e que permitiram a circulação de povos e culturas diversas. A fotografia e a pintura foram instrumentos de expressão dessa vivência, permitindo-me explorar territórios, memórias e identidades.

Conheci o quilombo Candeal II, no distrito da Matinha dos Pretos, onde a resistência cultural se mantém e os jovens protagonizam suas histórias, com destaque para o papel das mulheres. Descobri também que a Princesa do Sertão é território quilombola, e que essas experiências ampliaram minhas discussões sobre território e identidade. A avó paterna, que viveu em um quilombo urbano, me trouxe memórias de religiosidade, música e resistências culturais que ajudaram a construir minha própria identidade feirense.

Se eu pudesse voltar àquele dia na faculdade, responderia que a Princesa do Sertão é lugar de resistência, formada por quilombos e por lutas que se transformaram em música, dança, poesia e arte. A ausência de consciência cultural africana e indígena dificultou o processo de formação de minha identidade, e entendo que não há como ser de algum lugar sem uma viagem ao passado, que considera não apenas o espaço geográfico, mas as origens étnicas que nos permitem existir.

(*) Doutoranda em Critica Cultural pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Artista visuale professora na educação básica.educadoratatianealves@gmail.com e ex-colaboradora da Folha do Estado 

 

Comentários:

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.
Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Já Registrado? Acesse sua conta
Visitante
Quinta, 18 Setembro 2025

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://www.jornalfolhadoestado.com/