Pesquisa diz que quase 80% dos homicídios na Bahia não são elucidados

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Pesquisa diz que quase 80% dos homicídios na Bahia não são elucidados

Levantamento Onde Mora a Impunidade é do Instituto Sou da Paz 

Crédito: Reprodução

Já são mais de nove meses sem o sorriso, os afagos e o café preparado com todo o carinho. "Quando chegava do trabalho, encontrava ele sorrindo no sofá. Perguntava como foi o meu dia e já deixava o 'menorzinho' para mim e a mãe dele", relembra o pai do estudante Marco Gabriel Oliveira Mota de Souza, 18 anos. O rapaz e um amigo foram assassinados depois que traficantes chegaram atirando em uma festa.

À dor, soma-se a revolta: "Até hoje a polícia não diz nada. A impunidade dói também", desabafa o pai. O caso de Marco Gabriel chama atenção para o fato de que 78% dos homicídios investigados na Bahia ficam sem solução.

A informação consta na quarta edição da pesquisa Onde Mora a Impunidade, do Instituto Sou da Paz, que mostra a taxa de esclarecimentos sobre assassinatos e outros tipos de crime contra a vida no Brasil, em 2020. O levantamento foi divulgado no ano passado pela instituição, que tem o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) concedido pelo Ministério da Justiça. No ranking, a Bahia ocupa a 3ª posição de homicídios não solucionados, quando não é possível provar a autoria ou materialidade ou as duas condições, perdendo apenas para o Rio de Janeiro (86%) e Paraná (88%).

O objetivo do estudo é responder questões sobre a proporção dos homicídios dolosos que resulta em ações na Justiça em cada uma das unidades federativas do Brasil e quantos familiares de vítimas têm garantido pelo Estado o direito a uma resposta.

"A delegada disse à minha esposa que a gente tinha que trazer mais informações para eles [a polícia], porque a polícia não tem recursos para ficar indo lá [no local do crime]. Isso para mim é descaso, falta de humanidade", declarou o pai de Marco Gabriel, que pediu para não ser identificado na reportagem.

O filho dele estava no segundo ano do curso de engenharia em uma faculdade particular e era também Menor Aprendiz em um banco. No dia 7 de setembro do ano passado, Marco Gabriel e o amigo, Lucas Gabriel da Conceição dos Santos, que cursava radiologia, foram comemorar com os vizinhos a vitória do time local, em uma festa do tipo paredão na comunidade da Gomeia. Instantes depois, traficantes chegaram atirando aleatoriamente e os amigos foram atingidos. Os dois jovens eram filhos únicos.

Inquérito sem fim

A investigação sobre as mortes de Marco Gabriel e de Lucas ainda está na fase de inquérito, no Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP). De acordo com a pesquisa do Instituto Sou da Paz, quanto mais tempo demora a atividade investigativa, mais difícil fica a identificação dos autores de um crime, com maior possibilidade de o inquérito ter como destino o arquivamento.

Para acelerar o tempo de resposta às apurações, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) inaugurou, em 2016, no Centro Administrativo da Bahia (CAB), um Centro de Operações e Inteligência (COI), maior estrutura da América Latinha, e criou centros regionais integrados (CICOM), além de núcleos de tecnologia nas Polícias Civil e Técnica, um investimento total de R$ 250 milhões do governo do estado.

Porém, apesar de todo o investimento, os avanços no esclarecimento de crimes seguem lentos. "Avanços tecnológicos na área de segurança pública devem acompanhar o entendimento de que para que serve a segurança pública. Se temos um modelo baseado na violência, repressão, racismo, estigmatizarão, controle dos territórios negros, a tecnologia vai servir para o aprofundamento dessas desigualdades e não para a proteção da vida. É fundamental que a gente conecte o investimento na segurança pública com o investimento em ciência para produzir melhores saídas para os atuais problemas e também decisões políticas importantes, difíceis de serem tomadas, mas que são urgentes, como por exemplo, a superação do modelo baseado na guerra às drogas", avalia Dudu Ribeiro, que é coordenador-executivo da organização da sociedade civil Iniciativa Negra e coordenador da rede de Observatórios de Segurança na Bahia.

Em dezembro de 2018, o governo do estado implantou o projeto de Vídeo Policiamento - sistema que faz o reconhecimento facial de pessoas e placas de veículos, compartilhando informações em tempo real com operadores no COI. O programa custou R$ 18 milhões. "O reconhecimento facial é alvo de várias críticas por parte da rede de Observatórios. Há muitos casos de pessoas negras que foram abordadas e até presas por engano devido ao reconhecimento facial e o racismo do algoritmo [quando sistemas que dependem de algoritmos são programados de forma que perpetuam ou escondem preconceitos raciais já presentes na sociedade]", aponta Luciana Santana, cientista social e pesquisadora da rede de Observatórios de Segurança na Bahia.

Consequências

A impunidade trouxe às famílias de Marco Gabriel e Lucas Gabriel o medo de represália dos bandidos. Os pais dos dois não moram mais em Salvador. "A não elucidação dos crimes impõe à população um clima de terror, por passar a conviver com a impunidade e ali passa a existir um estado paralelo, um estado de exceção, onde impera nessas comunidades o toque de recolher, a lei do silêncio, o medo. Isso muda o hábito da população, pois para entrar e sair do bairro tem de haver identificação prévia", enumera Eustácio Lopes, presidente do Sindicato dos Policiais Civis (Sindpoc).

O deputado estadual Soldado Marco Prisco (União Brasil), membro da Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia (Alba), comenta os indicadores da Bahia no levantamento do Instituto Sou da Paz: "Além dos casos que ficam sem solução, temos consequências drásticas. A população da Bahia está com medo. Os comércios estão fechando, o turismo está baixando. A situação está caótica", afirma.

Cabe à Polícia Civil investigar as infrações penais, sejam as que chegam à corporação via boletim de ocorrência (BO) ou por outros meios. A PC verifica se existiu um crime de fato, quem é o autor e a materialidade.

"Como identificar criminosos em delegacias desestruturadas? O departamento de homicídios (DHPP) é uma vergonha. A sua estrutura interna funciona de forma precária, não temos servidores suficientes. Temos quase 200 delegacias sem delegados para tocar as investigações. Às vezes tem delegado, mas não tem escrivão e nem investigador. No interior faltam computadores, não tem internet, departamentos funcionam com internet paga pelo próprio delegado", critica o delegado Fábio Lordello, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado da Bahia (Adpeb).

A reportagem procurou a SSP para saber o que deu errado após tantos investimentos da gestão do PT em tecnologia, com um saldo de pouquíssimos resultados no esclarecimento dos crimes. O órgão respondeu que "é a Polícia Civil a responsável por elucidar e finalizar inquéritos". A Polícia Civil também foi procurada para responder porque os autores dos assassinatos de Marco Gabriel e Lucas Gabriel não foram até hoje identificados. Nenhuma resposta foi enviada.

 

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Sexta, 03 Mai 2024

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